sábado, 13 de setembro de 2008

Caminho Português de Santiago - Dia 2

Dia 18 de Agosto: Valença - Porriño

O segundo dia de caminhada iniciou-se cedo. Quando acordei um certo temor percorreu o meu corpo, por não saber se conseguiria andar e levar até ao fim o objectivo que tinha delineado. E, para mim, desistir não é uma palavra que exista no meu vocabulário.
A coxear e a arrastar-me fui arrumando a mochila e ajeitando o casaco. O dia nublado prometia criar algumas dificuldades. Por já conhecer o trajecto do ano anterior, sabia que poderia estar descansada nos primeiros Km, afinal era um trajecto que gostava.
A S. e a C. tinham algumas bolhas criadas no dia anterior, mas encontravam-se em melhor forma que eu. As três fomo-nos dirigindo para a ponte metálica que une Portugal a Espanha.

Atravessando a ponte que liga Portugal a Espanha


Com alguma dificuldade, mas tentando manter-me animada, fui calcorreando Tuy e os bosques envolventes. Começámos a encontrar vários peregrinos e num troço do percurso meio isolado, começou a chover. Tivemos de usar os Ponchos, capas horriveis para proteger o corpo e a mochila da chuva. Apesar do calor e cheiro a plástico que os ponchos libertavam ainda soltámos umas gargalhadas: eu e a S. parecíamos uns dromedários mas a C., como italiana que era, tinha uma capa toda fashion! Ou seja, até nas piores condições possíveis, a C. parecia que estava a desfilar em Milão. Mais peregrinos "dromedários" deslocavam-se ao fundo originando um espectáculo ridiculamente engraçado. Tivemos a sorte de a chuva ter durado pouco tempo e podermos tirar os ponchos. As minhas dores musculares atormentavam-me e tive de parar várias vezes com receio de que as câimbras não me deixassem prosseguir.

Fui tentanto incorporar a dor e dei comigo a pensar no que tinha deixado para trás, em Portugal. Tentei rir-me com algumas episódios uma vez que isso me ajudava a caminhar, ao mesmo tempo que comecei a aperceber-me da importância das coisas simples.


Nos bosques circundantes, entre Tuy e Porriño

Com o tempo aproximámo-nos da famosa "recta industrial", uma enorme estrada, cheia de indústrias e camiões a passar. Por esta altura a chuva tinha dado origem a um calor que aquecia o alcatrão que nos queimava os pés. Apesar de grande parte das pessoas não gostar deste trajecto para mim continua a ser um dos mais fáceis e, confesso, até gosto porque entre tanto barulho, poluição e vivências mundanas, consigo abstrair-me e apreciar ainda mais a simplicidade da vida, da natureza, lembrando-me constantemente do porquê de fazer tantos km com sofrimento. Relembra-me os meus objectivos.
Uma vez que começava a ganhar ritmo e a conseguir abstrair-me da dor, a partir de certa altura consegui caminhar de uma forma mais determinada e com mais confiança também, ao invés da S. e a da C., cujas bolhas tinham aumentado. Para elas o trajecto foi penoso, fazendo os últimos Km. com muita dificuldade.

Conseguimos chegar ao albergue onde tratamos das mazelas. A S. e a C. tinham os pés numa lástima e passaram grande parte do tempo a rebentar as bolhas e tentar minimizar os estragos. Eu, cujas dores me tinham atormentado, estava agora mais calma e bem disposta: não tinha ainda bolhas, apenas dores musculares que estava a conseguir controlar. Além do mais tinha um objectivo: ir aos correios para tentar enviar postais para casa. E tinha que ser naquele dia, para chegarem cedo. Elas ficaram a descansar e tratar das bolhas, enquanto eu me arrastei numa rua íngreme para tentar chegar aos correios. Quando lá cheguei li o aviso com a indicação de que em Agosto fechavam mais cedo. Conclusão: arrastei-me de volta para o centro de Porriño sem postais enviados. Tive a sorte de encontrar uma papelaria com um marco de correio cá fora e lá consegui enviar os malfadados postais. E senti um gostinho especial ao enviá-los, senti que estava a partilhar uma parte de mim, do meu mundo, com quem me era especialmente importante e com quem me tinha apoiado. E isso deu-me alento e fez-me perceber as coisas de uma outra forma também.

Para o jantar tivémos o privilégio de comer comida italiana, cozinhada especialmente por uma italiana, a C.! Além do valor simbólico foi uma das refeições que melhor me soube, pelo gostinho caseiro que já não conseguia saborear há uns dias, o que me confortou a alma.

Contactámos pela primeira vez com um sul africano de 80 anos que estava a fazer o caminho, de forma solitária e impressionante e comecei a personalizar o meu bastão enquanto me partilhava com a C.

Apenas tinham passado dois dias e conseguia sentir as pequenas mudanças de alma. O tempo tomou uma outra dimensão e os laços estabelecidos também. As companheiras de caminhada, eram agora companheiras de alma e trajectos de vida. Comecei a deixar que sentimentos positivos me inudassem e a perceber que esses sentimentos positivos eram as pessoas que tinha deixado em Lisboa, e o que já tinha construído com elas. Apercebi-me da importância da família, que apesar de todas as rabugices e discussões têm estado presentes, apoiando-me no meu caminho e dizendo-me que estarão do meu lado.

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